Não Há Tempo
É Tudo Erosão

A publicação Não Há Tempo – É Tudo Erosão propõe uma breve leitura partindo da ideia de um tempo naturalizado como único, o "tempo abstrato das máquinas" em contraste com os processos erosivos e sedimentares que apontam para o "tempo geológico".

As imagens fotográficas de rochas que compõem o ensaio visual da publicação foram editadas para serem submetidas a um processo de impressão específico, com a aplicação de retículas e saturação, a fim de criar indícios de camadas e aludir ao "tempo geológico". As fotos, a pesquisa e a edição de imagens são de Douglas Garcia.

O ensaio sobre o "tempo abstrato das máquinas" foi escrito pelo artista visual Daniel Jablonski a convite da Edições Membrana. O projeto gráfico de Marina Oruê, elaborado a partir do título da publicação, explora o uso das letras em português e inglês, evidenciado por camadas gráficas que sugerem relações de entrelaçamento e simultaneidade entre as páginas.

O lançamento da publicação Não Há Tempo – É Tudo Erosão aconteceu na Printed Matter's Virtual Art Book Fair PMVABF, New York, 25-28 de fevereiro, 2021.
Não Há Tempo – É Tudo Erosão
Marina Oruê e Douglas Garcia

︎︎︎publicação
13 x 18,5 cm, 56 páginas
impresso em risografia 2 cores:
medium blue, warm red
edição bilíngue de 100 exemplares
numerados em português/inglês

imagens e edição, Douglas Garcia
ensaio, Daniel Jablonski
design gráfico, Marina Oruê
revisão, Mariana Moura
tradução, Juliana Lopes
impressão, Entrecampo

São Paulo, SP, Janeiro de 2021
Edições Membrana






︎︎︎ensaio
Não Há Tempo – É Tudo Erosão


Pequeno ensaio, feito a pedido da Edições Membrana, sobre o sempre crescente da tecnologia sobre nossa percepção do real. Relaciono a transformação operada pelo relógio sobre o tempo no século 19 com aquela operada pela fotografia sobre o espaço no século 20.

Com isso, aponto o lugar paradoxal que ocupam as máquinas nas sociedades ocidentais: quanto mais presentes, menos perceptíveis se tornam. Mas, uma vez instaladas em nossos bolsos, rostos ou telas, funcionam como filtros (propriamente invisíveis), substituindo uma natureza concreta, qualitativa, heterogênea, por seu duplo, uma segunda natureza abstrata, quantificável e homogênea, pronta para ser consumida, trocada e acumulada. Assim como o dinheiro.


Daniel Jablonski, 2021
Edições Membrana, São Paulo, SP

É interessante pensar que o primeiro relógio mecânico tenha sido concebido a partir de uma das máquinas mais primitivas já construídas: o moinho movido à água. Foi na China, no século 11. O polímata Sū Sòng teve a ideia de utilizar a força do córrego que gira a roda não para triturar grãos, mas para medir a passagem do tempo, que transcorria à medida que as pás iam se enchendo de água.

        A despeito da simplicidade do mecanismo, desprende-se daí uma ideia bastante complexa do tempo. Por um lado, e ao contrário dos antigos relógios solares, este tinha a vantagem de manter um fluxo constante ao longo das 24 horas. Por outro lado, essa mesma continuidade era também passível de ser subdividida em unidades sucessivas que, correspondendo ao volume das pás, podiam ser isoladas umas das outras e contabilizadas.

        Mais do que interessante, é sintomático que tenha sido assim. Pois tal intuição construtiva antecipa a transformação radical que as máquinas vão, posteriormente, operar sobre nossa percepção do tempo. Antes da Revolução Industrial no Ocidente, estas eram exceções em um mundo essencialmente governado por ferramentas. O que muda, entre umas e outras, é o tipo de força motriz: já não é mais a energia humana (ou animal) que move o mecanismo, mas uma força natural, seja ela hidráulica, eólica, solar, a combustão, a vapor, etc.

        Essa revolução não é só energética, mas também funcional. Aparentemente, e a julgar apenas pelos resultados, a máquina parece servir ainda aos propósitos do homem: no final do dia, o grão foi moído. E o que é melhor: sem o esforço envolvido no uso de uma ferramenta. Mas, conceitualmente, essa independência muda tudo, inclusive o lugar do homem no processo produtivo. Ao passo que a ferramenta era uma extensão da mão do homem, a máquina se torna um substituto, podendo operar agora suas próprias ferramentas.

        É o que nota Marx no livro 1, de O Capital, no capítulo 13, intitulado 'Maquinaria e grande indústria': "A máquina, da qual parte a Revolução Industrial, substitui o trabalhador, que maneja uma única ferramenta, por um mecanismo, que opera com uma massa de ferramentas iguais ou semelhantes de uma só vez, e que é movimentada por uma única força motriz, qualquer que seja sua origem[1]".

        Por isso, é preciso entender o que implica esse caráter automático da máquina: para que possa funcionar "sozinha", é preciso que um operador execute as ações necessárias, que ao menos vigie o seu funcionamento. A máquina tem um mecanismo sofisticado (e caro), que só pode administrar uma certa quantidade de energia; com um pouco mais ou um pouco menos que a medida ideal, ela quebra. E isto é um problema. Ao contrário, o homem vale cada vez menos, podendo ser substituído por outro análogo. Ou por uma mulher. Ou criança.

        Mas não foi apenas o trabalhador que se tornou então indiferente e substituível — quase um autômato —, foi o próprio tempo do trabalho. Se este era antes medido pela duração das tarefas específicas (o tempo de ordenhar a vaca, de curtir o couro, as estações das colheitas), ele passou a ser determinado pelas unidades abstratas que compunham os quadrantes dos relógios: horas, minutos, segundos.

        A rigor, já não importava mais que o trabalhador realizasse essa ou aquela outra tarefa (as posições são intercambiáveis), mas apenas que tratasse de não desperdiçar o tempo de seu patrão. Pois, sendo seu tempo de vida a única coisa que lhe restou a vender, foi isto que, em última instância, o seu patrão adquiriu. De fato, quando o tempo se torna uma moeda de troca, é preciso reconhecer, como diz E. P. Thompson, em Costumes em comum, que "ninguém (mais) passa o tempo, e sim o gasta"[2].

        A introdução dos relógios nas fábricas não só teve o sentido de sincronizar a cadeia produtiva, cada vez mais complexa e mecanizada, mas também funcionou como uma nova forma de controle social sobre os trabalhadores, sob a autoridade dessa nova "moeda-tempo". Não à toa, ainda no início do século 19, revoltas populares foram dirigidas contra o relógio, sentido pelos operários como uma fonte de opressão ainda mais violenta que o restante do maquinário. Contudo, aos poucos, a estratégia foi se transformando: aprendeu-se a usar o relógio a favor das reivindicações sociais, em campanhas sucessivas de redução da carga horária semanal. Aqueles ponteiros passaram a marcar então a diferença objetiva que existia, pelo menos naquele momento, entre o tempo de trabalho e o tempo de descanso.

        Ora, quando isso aconteceu, o tempo abstrato do relógio já se naturalizou. E isso só pôde acontecer porque o aparelho foi se tornando cada vez mais barato, cada vez mais popular e, sobretudo, cada vez menor. Como um instrumento portátil, ele foi aos poucos entrando no interior das casas e, mais tarde, no bolso dos casacos dos indivíduos. Desapareceu de vista para tornar-se onipresente.




Algo semelhante ocorreu com a máquina fotográfica, inventada nas décadas finais da Primeira Revolução Industrial. Quando Louis Daguerre anunciou ao mundo seu método, em 1839, ele o caracterizou em seu texto 'Daguerreótipo' primeiramente por sua praticidade: "os meios de execução são simples, não exigem nenhum saber especial para serem utilizados, bastando apenas cuidado e um pouco de hábito para conseguir os melhores resultados"[3].


        Como se sabe, a atribuição da paternidade da fotografia a Daguerre tem muito de político — um deputado convenceu o Estado francês a adquiriressa patente em particular —, mas diz muito também sobre a natureza do invento: no fundo, mais importante que produzir imagens era criar um produto.

        Para inventores como Daguerre, não bastava encontrar uma forma de fixar as imagens fugidias da natureza no interior de uma câmera escura. Era preciso garantir que o procedimento fosse estável, relativamente simples e, sobretudo, economicamente viável. E, no fim das contas, o método era objetivamente mais simples que o de seu antigo parceiro comercial, Joseph Nicéphore Niépce, que obtivera a primeira fotografia mais de dez anos antes.

        Esse espírito comercial ganhou sua expressão máxima com George Eastman, o criador da marca Kodak, cujo slogan mais famoso é "você aperta o botão, nós fazemos o resto". Ao contrário dos demais aparelhos disponíveis em 1888, caros, portentosos e de manuseio complexo, sua proposta era uma caixa fechada, fácil de ser transportada e manipulada, contando com um rolo de 100 poses e um foco fixo que não permitia alterações.

        Seu produto se destinava não àqueles que possuíam os recursos para a aquisição de um equipamento extravagante, ou o tempo livre necessário a experimentações “artísticas”, mas a todo e qualquer um. Por trás dessa iniciativa de democratização das imagens, estava também uma estratégia comercial que se tornaria exemplar: basicamente, Eastman compreendeu que valia a pena apostar em dispositivos mais simples (e mais baratos) para, em seguida, lucrar com peças e serviços adicionais.

        Custando US$ 1, sua câmera era basicamente um modo de vender a real inovação da companhia: um filme de rolo removível que tinha de ser revelado no laboratório da Kodak. Criava-se aí um novo mercado, altamente lucrativo e "fidelizado", feito de usuários amadores que não precisavam saber nada sobre seu equipamento e que, por isso mesmo, passavam a depender completamente de seu fornecedor.

        Assim, o que foi anunciado como uma nova forma de autonomia acabou paradoxalmente gerando uma nova forma de dependência. Econômica, por certo, mas também existencial. Pois Eastman não só respondeu a um legítimo desejo do público — o de guardar uma memória visual de sua vida —, mas trabalhou ativamente para fazer disso uma espécie de direito inalienável. Como resultado, a possibilidade de exercer tais direitos fotográficos sobre o mundo passou a levar o nome de uma empresa privada: era o "momento Kodak".

        E a publicidade teve um papel fundamental na criação de uma demanda que era vivida por seus consumidores como algo da ordem do mais puro desejo, imediato, natural, espontâneo. Por meio de anúncios reiterados ao longo de muitas décadas, a própria palavra "Kodak" — escolhida por soar bem, a letra "K" parecendo moderna — passaria a ser associada com o próprio ato fotográfico. Mais do que remeter à câmera e ao filme que estavam objetivamente à venda, Eastman conseguiu transformar sua empresa em um verbo da língua inglesa: "Kodak as you go", dizia o anúncio.





A miniaturização da câmera fotográfica também foi fundamental nesse processo de naturalização da técnica. Quando passaram a caber no bolso de um casaco, elas se tornaram uma extensão invisível do corpo do indivíduo — uma espécie de prótese mecânica, mas sentida como algo orgânico. Então, fazer fotos já não era mais uma atividade à parte, um hobby de luxo, mas uma atividade intrínseca à vida cotidiana: se come, se trabalha, se cria uma família e se fotografam todas essas coisas. Caso contrário, não aconteceram.

        Susan Sontag apontou, em sua coletânea de ensaios Sobre a fotografia, o surgimento, no século 20, de uma "visão fotográfica" que dispensaria a própria câmera. De tanto consumirmos imagens, diz ela, em cartões-postais, revistas e (hoje) telas, aprendemos a ver o mundo fotograficamente. Trata-se aí de um novo código visual que redefine "todas as nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar"[4].

        Isso nada tem de inocente. A lógica do "enquadramento" da fotografia destrói a aparência de unidade da natureza, típica da idade clássica, despedaçando a realidade em uma infinidade de átomos visuais. A fotografia, diz ela, não vem apenas constatar que o mundo moderno está fraturado, desarticulado, desconexo; vem extrapolar esse estado de fragmentação.

        Longe de seus contextos de origem, cada um desses fragmentos de mundo assume o papel de uma nova unidade provisória. Mas, contrariamente à imagem clássica da natureza, as fotografias já não são mais transparentes, e sim essencialmente opacas, abstratas, peças soltas de uma unidade maior sempre faltante. Assim, uma visão alternativa da natureza se sobrepõe à realidade, constituída pela correlação especulativa de todas essas imagens descontextualizadas.

        Especulativa, pois essa nova experiência do real excede a experiência concreta de qualquer indivíduo. Além de seu campo de experiências, ele ou ela tem de lidar também com fragmentos das vidas de outras pessoas, inclusive de outras épocas. Não apenas a soma das partes é sempre maior que o todo, como a ordem desses elementos é também indiferente. Sontag escreve ainda: "Num mundo regido por imagens fotográficas, todas as margens ('enquadramento') parecem arbitrárias. Tudo pode ser separado, pode ser desconexo, de qualquer coisa"[5].

        Em suma, a câmera fotográfica parece fazer com o espaço o que o relógio mecânico havia feito com o tempo. A realidade é fragmentada em unidades equivalentes e intercambiáveis, assim como o tempo fora antes fragmentado em intervalos abstratos e substituíveis. Em ambos os casos, a manutenção da referência ao mundo da experiência não passa de uma miragem. As imagens fotográficas não correspondem mais ponto por ponto às coisas, exatamente como as subdivisões do relógio há muito já não coincidiam com uma fração exata do curso aparente do Sol.




Se no século 19 o relógio transformou tempo em dinheiro, no século 20 foi a vez de a fotografia capitalizar o espaço. Jonathan Crary, em Técnicas do observador, propôs um paralelo direto entre as imagens e o dinheiro: "(Ambos) são formas mágicas que estabelecem um novo conjunto de relações abstratas entre indivíduos e coisas, e impõem essas relações como sendo o real"[6].

        Faz sentido: o dinheiro é, de fato, essa medida impessoal de todas as coisas, produzida em série e circulando livremente sem corresponder exatamente a seus supostos referentes físicos. Mas o essencial do paralelo reside na ideia de troca: não importa que não correspondam à realidade, apenas que correspondam entre si. A fotografia, diz ele, criou uma medida universal entre todas as coisas visíveis, que, tornadas imagens, podem agora ser isoladas, quantificadas e acumuladas sem limite.

        Mas é igualmente importante que estas relações sejam sentidas não como abstratas, e sim como perfeitamente concretas. Este é o poder "mágico" do capitalismo, que permite apresentar-se não como uma construção social e histórica, mas como uma resposta natural aos nossos desejos mais íntimos.

        Essa mesma ideia já aparecia em Sontag, quando evocava uma certa "magia equívoca da imagem fotográfica". Ora, isto não é exclusividade da câmera fotográfica, mas diz respeito ao que ela partilha com todas as outras máquinas, sobretudo com o relógio.

        Por tirar sua fonte de energia diretamente da natureza, dispensando a ação do homem, essas máquinas podem aparecer como uma extensão da própria natureza. Mas são ainda melhores, mais práticas, mais rápidas: tudo o que antes acontecia de forma espontânea agora se dá de forma instantânea, dando, assim, a impressão de um mundo encantado, no qual basta "apertar o botão" para que tudo aconteça "sozinho".

        Enfim, uma segunda natureza, na qual finalmente poderíamos descansar. O que é evidentemente falso: quem dorme é o proprietário da máquina, nunca o operador. Mas a promessa é indiscutivelmente sedutora e, por isso, segue bem viva desde que o antigo epigramista grego Antípatro de Tessalônica compôs, em 85 a.C., talvez a primeira campanha publicitária da história — não por acaso, de uma máquina, o moinho de água:


"Para de moer o grão, ó mulher que te esfalfas no moinho, dorme até tarde, mesmo que o canto do galo anuncie a alvorada, porque Deméter ordenou às ninfas que realizem por suas mãos o trabalho e, inclinando-se no cimo da roda, elas fazem girar as pás que movimentam a pesada pedra molar de Nysis"[7].



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1        MARX Karl. O Capital: crítica da economia política. Coordenação e revisão de Paul Singer. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe, São Paulo: Nova Cultural Ltda., 1996. t. 2, cap. 13, p. 11.
2        THOMPSON, Edward Palmer. "Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial". In: THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. Tradução de Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 271.
3        DAGUERRE, Louis Jacques Mandé. "Daguerreótipo". In: TRACHTENBERG, Alan (Org.). Ensaios sobre fotografia: de Niépce a Krauss. Lisboa: Orfeu Negro, 2013 (1839). p. 32.
4        SONTAG, Susan. "Na caverna de Platão". In: SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 (1977). p. 13.
5        Idem, p. 33.
6        CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. p. 22.
7        GIMPEL, Jean. A Revolução Industrial da Idade Média. Mem Martins: Publicações Europa-América, 2001 (1975). p. 20-21.